Ken Wilber, o Modelo Integral e a Realidade Brasileira

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Ken Wilber, o Modelo Integral e a Realidade Brasileira

Moacyr Castellani

“Com 23 livros traduzidos em mais de 25 países, é o autor acadêmico mais traduzido na atualidade. Pela natureza básica e pioneira de suas sínteses, tem sido chamado de ‘Einstein da Consciência’. Seus modelos e sua metodologia têm sido utilizados e citados mundialmente, inclusive por personalidades como Bill Clinton, Al Gore e Tony Blair.

Há 23 anos tenho utilizado seus conceitos em meu trabalho e na vida pessoal. Modelos como ‘O Espectro da Consciência’, ‘Os 4 Quadrantes’, ‘A Falácia Pré-Trans’ e ‘Os Três Tipos de Ciência’ são ferramentas poderosas para diagnosticar e resolver conflitos em inúmeras áreas.

Há alguns anos, Ken Wilber incluiu em seu trabalho o modelo criado pelo também americano Clare Graves – a ‘Dinâmica da Espiral’. Poderosa ferramenta que define de forma simples e ao mesmo tempo profunda os vários níveis de Consciência de um indivíduo ou grupo, a Espiral se integrou ao ‘Modelo dos 4 Quadrantes’ de Wilber no que foi chamado TQTN – Todos os Quadrantes, Todos os Níveis – talvez a ferramenta mais completa para a compreensão do composto físico/mente/cultura/sociedade.

Em abril de 2005 tive o privilégio de ser recebido por Ken pela primeira vez em sua casa em Denver para uma conversa particular. Nas quase 3 horas que estivemos juntos, discutimos sobre os mais variados temas, desde filosofia e psicologia, às tendências do mundo corporativo e economia mundial.

Durante a conversa, Ken se mostrou particularmente interessado em obter informações sobre um assunto que muito nos interessa – a realidade brasileira. Para isto, escolheu o modelo da ‘Dinâmica da Espiral’ como ferramenta para compreender melhor o que está acontecendo em nosso país.

Este artigo tem como objetivo identificar os vários níveis de Consciência de um indivíduo ou grupo e aplicar o modelo da ‘Dinâmica da Espiral’ para desvendar alguns mistérios da realidade brasileira – seus problemas e desafios atuais – seguindo o estilo descontraído que acompanha a análise profunda e ao mesmo tempo objetiva de Ken.

QUANDO UMA FERRAMENTA TRANSFORMA A REALIDADE

É curioso como a vida de uma pessoa pode mudar de repente. Um dia aconteceu com o ‘Seu Reginaldo’. Para quem não o conhece, ele foi zelador do prédio onde moro. Dentre suas várias atividades, diariamente ele esvaziava a caixa de correios e distribuía a correspondência aos apartamentos. No geral seu trabalho era bem feito, embora eu achasse que distribuir correspondências não era o seu forte. Ele as misturava, ou melhor, se confundia e entregava a carta endereçada ao vizinho de cima em minha casa, entregava a conta de luz do meu apartamento na casa do vizinho de baixo etc. Pensei que fosse a idade, ele não era tão jovem assim. Mas eu estava enganado.

Certo dia entendi o seu ‘problema’. Presenciei quando retirava as correspondências da caixa de correio e tentava descobrir para quem se endereçava um grande envelope. O que havia de errado? Ele não enxergava, ou melhor, não conseguia ler de perto. Perguntei se já havia feito um exame de vista. Imediatamente, respondeu: ‘Não senhor, nunca consultei um médico de olhos’. Naquele momento formulei a minha hipótese. Só faltava checar na prática.

Liguei para a Ana Luiza, uma amiga oftalmologista e perguntei se poderia atendê-lo. Sempre disponível e sabendo das dificuldades em marcar uma consulta pelo SUS, ela concordou e o atendeu sem custo em seu consultório. Uma semana depois, a conclusão: ‘Seu Reginaldo’ era míope! Resultado: os próprios moradores do prédio se reuniram e mandaram fazer seus óculos.

Lentes prontas, armação escolhida, chegou o grande dia. Ele recebeu os óculos, ajeitou-os no rosto… Sua feição mudou! Como num passe de mágica, ele enxergou! Tudo se abriu, o mundo se transformou para ele.

Conclusão: pessoas podem sofrer com problemas sem mesmo imaginarem que existam soluções para suas dificuldades – que possam existir lentes para enxergar melhor.

O modelo da ‘Dinâmica da Espiral’ é como uma lente que nos faz enxergar a realidade mais nítida. Quatro conceitos são fundamentais:

1- as pessoas são diferentes porque possuem valores diferentes (enxergam a realidade utilizando lentes diferentes);

2- desentendimentos podem surgir quando diferentes valores entram em conflito (se um indivíduo é míope, pode achar que todos enxergam como ele e assim não entender que também existam pessoas que sofrem de astigmatismo);

3- não existe valor (nível de consciência) melhor que o outro mas alguns são mais complexos que outros;

4- um indivíduo ou grupo pode manifestar seu valor predominante: a) de forma saudável ou b) de forma patológica.

A DINÂMICA DA ESPIRAL E O SISTEMA DE VALORES

O modelo da Dinâmica da Espiral é como um conjunto de lentes que você pode utilizar para enxergar a realidade. Cada lente é um valor que o indivíduo ou grupo utiliza para interpretar e interagir com a realidade. Cores foram atribuídas a cada nível de consciência no sentido de facilitar a compreensão de cada nível de consciência. Os principais níveis são:

BEGE – básico-instintivo: o primeiro nível de consciência surgiu há 100.000 mil anos quando o ser humano era nômade. Sua vida era solitária, seguia os instintos em busca de alimento e segurança. Às vezes acasalavam. No máximo, viviam em bandos. A “preocupação” essencial era sobreviver.

Hoje em dia, viver para sobreviver é algo inerente a crianças recém-nascidas, idosos senis, mendigos, moradores de rua e massas esfomeadas. Todos possuem, como objetivo específico, a sobrevivência.

PÚRPURA – mágico-místico: há 50.000 anos, os seres humanos passaram a viver em grupos (tribos). Aprenderam a dividir suas tarefas e a valorizar as “relações de sangue”. Diante um mundo “mágico e assustador”, eram temerosos em relação ao destino que os “Deuses” lhes reservavam. Fiéis aos mais velhos, aos ancestrais e ao clã, preservavam objetos, lugares sagrados e cumpriam os ritos, ciclos e costumes tribais.

Nos dias atuais este é o mesmo estilo de valor que guia o pensamento das famílias tradicionais, pessoas que acreditam em simpatias, soluções mágicas, juramentos de sangue, amuletos e figuras mitológicas. O princípio do estilo púrpura guia a essência das gangues, grupos fechados e “tribos” modernas – se proteger através dos rituais e das tradições do clã.

VERMELHO – poderoso-impulsivo: há 10.000 anos, o indivíduo se “rebelou”. Cansado de obedecer às ordens e costumes da tribo, tornou-se egoísta e individualista. Lutar para sobreviver independentemente do que os outros queriam era o seu ímpeto. Impor o poder sobre o eu, os outros e a natureza, fazer o que se quer eram as suas leis. No estilo vermelho, o indivíduo deseja atenção, exige respeito e dita as regras. Certo de que o mundo é uma selva cheia de ameaças e predadores, conquista, engana e domina os outros sem qualquer culpa ou remorso.

Este é o estilo dos bandidos, pessoas desonestas, políticos corruptos e atitudes egoístas. Certo de que a vida precisa lhe dar prazer sem limites, o individualista  impõe de forma implacável ao mundo e aos outros o seu DOMÍNIO E PODER.

AZUL – a força da verdade: há 5.000 anos, surgiu um nível de consciência baseado em uma crença absoluta que levava o indivíduo a sacrificar-se a uma causa, verdade ou caminho virtuoso que considerava de elevada importância. Certo da existência de uma “ordem superior”, o indivíduo aceitava se submeter a um código de conduta que acreditava se basear em princípios eternos e absolutos. Qualquer impulso ou visão inadequada deveriam ser controlados através da culpa. Obedecendo com rigor autoridade superior, o indivíduo “azul” seguia as leis, métodos e disciplinas que acreditava construir o caráter e os valores morais.

Religiões, as forças armadas, o sistema judiciário, associações do tipo “Rotary”, o fundamentalismo islâmico, os procedimentos rígidos definidos em manuais de empresas valorizam essencialmente o SIGNIFICADO e a ORDEM  ABSOLUTA.

LARANJA – autonomia e manipulação: há 1.000 anos, empreender tornou-se fundamental. A preocupação em tornar as coisas melhores, em agir por interesse pessoal jogando para ganhar, a mudança, o avanço, o progresso e a vida abundante passaram a ser os valores essenciais para quem avançou a este nível de consciência que define que pessoas otimistas, autoconfiantes e dispostas a arriscar merecem o sucesso. Prosperar pela estratégia, desenvolvimento da tecnologia e competitividade eram as palavras de ordem.

Atualmente o mundo corporativo, o mercado financeiro, as novas tecnologias, o pensamento capitalista e a classe média emergente definem o que podemos chamar de EU EMPREENDEDOR.

VERDE – igualdade e comunidade: há 150 anos, surge um novo tipo de pensamento que valoriza, fundamentalmente, o vínculo humano. Para este estilo, o bem-estar das pessoas e o consenso têm prioridade e o espírito humano deve ser liberto da avareza e dos dogmas. Oportunidades devem surgir igualmente entre todos. Reconciliação, reunir-se em comunidades para experienciar o crescimento partilhado são os objetivos finais.

O Greenpeace, a ecologia profunda, os movimentos pacifistas, governos assistencialistas, grupos voluntários e entidades sem fins lucrativos são exemplos de

um estilo que prioriza a ORDEM IGUALITÁRIA e o VÍNCULO HUMANO.

AMARELO – flexibilidade e funcionalidade: surgido há 50 anos, este nível de consciência tem como ponto central a adaptação flexível às mudanças. Devemos ser responsáveis pelo que somos e o que aprendemos a ser. A beleza da existência deve ser valorizada acima das posses materiais. Flexibilidade, espontaneidade e funcionalidade têm prioridade máxima. Conhecimento e competência deveriam substituir posição, poder e estatuto. As diferenças podem ser integradas em fluxos interdependentes e naturais. No estilo amarelo, o indivíduo deve aprender a ser livre e questionar.

O nível de consciência amarelo está presente nas organizações de Peter Senge, no pensamento integral de Ken Wilber, nas empresas que aliam alta produtividade com eficiência, eficácia e qualidade de vida. O ponto central deste nível de consciência é o FLUXO FLEXÍVEL e o EU INTEGRADO.

TURQUESA – visão global, vida e harmonia: surgido há 30 anos, o “Turquesa” se define pela experiência do todo da existência pela mente e pelo espírito, tendo a concepção que o mundo é um único organismo dinâmico com sua própria mente coletiva. O eu é distinto e ao mesmo tempo parte integrante de um todo maior, energia e informação atravessam o total ambiente da terra.

O “Turquesa” está presente nas idéias de Gandhi, no “Espectro da Consciência” de Ken Wilber, na hipótese de Gaia, no pensamento de Teilhard de Chardin, onde o objetivo crucial é PROCURAR A ORDEM sob o caos aparente da Terra.

A DINÂMICA DA ESPIRAL E A REALIDADE BRASILEIRA

Nas últimas décadas, três elementos compõem os principais desafios da realidade brasileira: 1- o desemprego; 2- a miséria; 3- a violência. A solução destes problemas tem se mostrado complexa, principalmente pela falta de um modelo de análise apurado para definir as prioridades e os pontos-chave de atuação.

Ao se utilizar o modelo da ‘Dinâmica da Espiral’, podemos perceber que o Brasil é uma nação que anseia atingir o mundo ‘Laranja’ (empreendedor, tecnológico, gerador de riquezas) e que possui, no seu nível ‘Azul’, o gargalo do seu crescimento. Temos um ‘Azul’ fraco que se caracteriza pela corrupção, lentidão da justiça, impunidade, desrespeito às regras, informalidade e descrença nas instituições.

Este ‘Azul’ patológico impede que o país ascenda a um nível empreendedor, de crescimento e geração de riqueza porque cria temor para que investidores apostem na ampliação de empresas, formação de novos negócios e geração de empregos. A carga tributária gerada pela corrupção e má administração desestimula o indivíduo empreendedor porque gera insegurança para assumir riscos, gera a preocupação do surgimento de novos tributos, gera desconfiança porque regras podem mudar de uma hora para a outra.

Muito se fala que o foco principal para a renovação do país seria a educação, mas eu discordo. É também um ponto muito importante, mas ainda não é o prioritário. O ponto chave é o fortalecimento das instituições, a reestruturação do sistema judiciário e tudo o mais que o cerca para que a punição finalmente supere a ilegalidade. O compromisso, a responsabilidade e o respeito às regras é que trarão a tranqüilidade necessária para que investimentos sejam direcionados de forma eficiente, gerando riqueza e estabilidade para que a nação cresça e se torne justa para todos.

Os países ricos são países que possuem um nível ‘Azul’ saudável, como os países nórdicos e os Estados Unidos. Podemos encontrar falhas em alguns pontos do modelo americano, mas é unânime afirmar que seu nível ‘Azul’ funciona adequadamente. Quando uma parenta do presidente foi flagrada consumindo álcool ilegalmente, o policial não teve dúvida: levou-a para a delegacia para que ela fosse punida de acordo com a lei. Ao contrário, é difícil imaginar que algo aconteceria se a mesma situação ocorresse no Brasil.

Quando o estilo ‘Azul’ está em equilíbrio, surgem as condições necessárias para um estilo empreendedor – o ‘Laranja’.

Quando o estilo ‘Azul’ está em desequilíbrio, ao invés de avançarmos para o ‘Laranja’, regredimos ao ‘Vermelho’. Foi o que aconteceu com a antiga União Soviética. Estava migrando para uma realidade ‘Laranja’ mas, com a divisão e o desmantelamento da nação, regrediu ao ‘Vermelho’ – é fácil perceber o crescimento do domínio da máfia russa, a venda de armas nucleares a terroristas, a ampliação descontrolada da violência.

Esta também tem sido a realidade do nosso país – o nível ‘Azul’ brasileiro está decadente e o nível ‘Vermelho’ continua em plena ascendência.

Para piorar, a onda ‘vermelha’ é estimulada pelos ‘Verdes’, como por exemplo: um traficante (vermelho) manda executar cinco pessoas em Copacabana. Quinhentos integrantes do movimento ‘Viva Rio’ (verde) saem de branco pelas ruas numa passeata pela paz, lembrando à população que os executados eram chefes de família, que foi uma grande injustiça tudo o que aconteceu.

É fato que o crime foi claro e totalmente repudiável. Aliás, o objetivo do ‘Viva Rio’ foi o de sensibilizar os agressores e incentivar o recuo da violência, o que é respeitável. Mas o problema é que o tiro pode sair pela culatra quando falamos de níveis de consciência diferentes.

A paz não é tida como ‘valor’ para o ‘Vermelho’. Para o ‘Vermelho’, valor é individualismo e poder. Na cabeça do traficante, o pensamento é o seguinte: ‘cinco foram executados, quinhentos formaram uma passeata. Conclusão: se eu ordenar a execução de dez, mil pessoas sairão pelas ruas! Vejam como eu sou poderoso!’.

Na verdade, é preciso construir soluções eficazes e não apenas eficientes para cada dificuldade. Assim, problemas ‘Vermelhos’ precisam de soluções ‘Vermelhas’. Problemas ‘Vermelhos’ não conseguem ser resolvidos através de soluções ‘Verdes’, por exemplo.

O esporte (Vermelho saudável) pode ser uma boa alternativa como solução para um problema ‘Vermelho’. O projeto que criou um torneio de futebol onde os jogos aconteciam dentro de uma favela durante a madrugada dos sábados é um bom exemplo. Reduziu significativamente a violência nas redondezas porque direcionou a agressividade ‘Vermelha’ para uma disputa esportiva. A testosterona que estimula o conflito e a ‘batalha’ era direcionada a uma atividade saudável e aceita pela sociedade.

A certeza da punição imediata é também outro instrumento fundamental para a transformação do ‘Vermelho patológico’ em ‘Vermelho Saudável’. Foi o que aconteceu em Nova Iorque, quando Rudolf Giuliani desenvolveu a chamada ‘tolerância zero’. Os delitos eram identificados e punidos imediatamente, inclusive os de menor gravidade. Isto desestimulou o ‘lucro fácil’ que a criminalidade ‘Vermelha’ conseguia obter através da violência.

Inúmeras correlações podem ser feitas através da ‘Dinâmica da Espiral’para resolver problemas e dificuldades em torno de todos os níveis de consciência. É por isto que é importante apropriar-se de um modelo que explique de forma mais clara o porquê de nossas dificuldades atuais como indivíduos, grupos, líderes, empresas e nação. Afinal, precisamos estimular o desenvolvimento de soluções mais eficientes e eficazes para os desafios de todos nós.”